Nós vamos sorrir. Sorriam”. O editor do jornal insistiu para que não, mas Eunice Paiva, protagonista de Ainda Estou Aqui, recusou-se a atender o pedido. A foto será com toda a família sorrindo, sem tristeza. Trata-se de uma das cenas mais emblemáticas do filme de Walter Salles e, curiosamente, a primeira imagem do trailer. “É um filme sobre memória”, relata Fernanda Torres, que interpreta Eunice, em entrevista à CNN. E não é por acaso; afinal, através da memória, vemos uma família aprender, sobreviver e resistir. Ainda Estou Aqui nos lembra com precisão e sensibilidade como os registros são fundamentais para escrever nossa história – seja ela a de uma família ou de um país.
Eunice Paiva é uma personagem real, mãe do escritor Marcelo Rubens Paiva, cujo livro originou o filme. Premiado com Melhor Roteiro no 81º Festival de Veneza, Ainda Estou Aqui foi ovacionado internacionalmente e escolhido para representar o Brasil no Oscar de 2025. A trama acompanha Eunice (interpretada por Torres), esposa de Rubens Paiva (Selton Mello), ex-deputado cassado pelo golpe de 1964, sequestrado e nunca mais visto. Sem fazer rodeios, o filme explora, desde os primeiros instantes, o terror da ditadura militar.
Curiosamente, o filme surpreende ao focar, de fato, no cotidiano familiar dos Paiva. Após uma cena de abertura impactante, a narrativa nos transporta para o Rio de Janeiro dos anos 70, em uma reconstituição meticulosa da época. É um retrato de momentos aparentemente triviais, com a família reunida em almoços, rodeada de música clássica e dança. Mas, como um presságio sombrio, esses momentos felizes têm contornos limitados: entre a casa e a praia, há ruas sob controle militar. A sensação de um perigo iminente surge em cada ligação, visita ou conversa suspeita que Rubens recebe. E então os bons momentos vão sumindo com a batida na porta de intrusos. A câmera de Salles se torna mais sombria, a pressão contida e feroz dos agentes da ditadura e a sensação de impotência quase transforma Ainda estou aqui em um filme de terror claustrofóbico. O suspense que crescia dá lugar ao horror da prisão, e em seguida substituído pelo trauma familiar.
A direção de Salles se destaca ao retratar o horror da ditadura de forma subentendida, quase nunca explícita, apostando na sugestão e na percepção do espectador. São detalhes quase furtivos – sons ao fundo, sombras, takes rápidos – que exigem uma atenção minuciosa. Por que, então, nos sentimos tão profundamente tocados? A resposta parece estar no trabalho de um elenco excepcional, que infunde realismo aos personagens. Selton Mello encarna um pai afetuoso, carismático e protetor, cujas ações clandestinas de resistência acabam sendo reveladas em suas interações mais íntimas. E é impossível ignorar a entrega de Fernanda Torres: conforme a narrativa adota a perspectiva de Eunice, vemos o peso das emoções contidas, o desespero disfarçado e a força para manter a família unida, ainda que no silêncio da espera.
Ao concentrar a memória dolorosa de uma época na trajetória pessoal de uma mulher, Ainda Estou Aqui escapa do didatismo comum em muitos filmes históricos. É exatamente essa perspectiva individualizada que torna a obra universal, revelando um poder de identificação que atravessa gerações e culturas. Embora o filme tenha um ritmo clássico, o coração de sua narrativa reside no retrato íntimo das dores não visíveis, na vida interrompida pela ausência e pelas lacunas de um trauma que se prolonga, invisível, entre as gerações.
Na fase final, Salles explora temas de justiça social e os ecos persistentes de um passado inescapável. Eunice, agora nos estágios iniciais do Alzheimer e interpretada com brilhantismo por Fernanda Montenegro, simboliza a memória fragmentada de uma época. O filme questiona: sem as lembranças, uma pessoa ainda é a mesma? E, mais amplamente, como um país pode superar seu passado enquanto ele insiste em retornar, velado, aos dias atuais?
Suprimindo emoções para concentrar-se na protagonista, o longa torna-se, acima de tudo, um estudo sobre a memória como um alerta intergeracional. Em tempos de revisionismo histórico, a trajetória desta família desponta como um lembrete urgente dos riscos envolvidos no flerte com ideologias autoritárias. Ao expor o desmantelamento abrupto de uma família burguesa, tradicional e estruturada em valores patriarcais, o filme aponta incisivamente para um país onde muitos parecem ignorar ou romantizar os horrores da repressão. Aqui, a memória não é apenas uma saudade revisitada, mas uma advertência densa e dolorosa sobre as consequências de negligenciar o passado.
Essa narrativa de trauma familiar erige-se como uma advertência visual e emocional contra o esquecimento histórico, uma cobrança silenciosa dirigida àqueles que subestimam os custos de exaltar um período sombrio, marcado pela violência e pela supressão de liberdades. Ainda Estou Aqui transforma o trauma familiar em um lembrete contundente do preço que se paga pela negligência histórica e merece ser celebrado por essa coragem. Fica claro que poucas atrocidades foram realmente responsabilizadas, e que, enquanto não encararmos essas memórias com a seriedade devida, estaremos perigosamente próximos de repeti-las. É um testemunho da dor e uma advertência clara de que essa história não pode – e não deve – se repetir.