Herege prega com ironia, mas hesita em consumar sua própria heresia | Crítica

Desde Hereditário (2018), a A24 tem se destacado ao redefinir o terror mainstream com uma abordagem diferenciada. Não seria justo afirmar que estamos diante de algo inteiramente inovador ou fora da caixa, mas há, sem dúvida, um toque distintivo que vem revitalizando o gênero moderno. Herege, lançado no Festival de Toronto de 2024 e dirigido por Scott Beck e Bryan Woods, exemplifica esse movimento. O filme apresenta um terror deliberado que, embora hesite em ser ofensivo, ousa brincar com conceitos religiosos ao custo da figura divina. Essa abordagem audaciosa, porém, não é meramente provocativa: é uma forma de explorar o drama com intensidade e um linguajar verborrágico, onde um teólogo sádico e arrogante assume um papel central. Ainda que não tenha pretensão de abalar ou reafirmar a fé do público, é raro encontrar um terror que satiriza e prega com tamanha desenvoltura.

 

O teólogo palestrinha, Sr. Reed, interpretado com maestria por Hugh Grant, transforma-se no infortúnio de duas missionárias em busca de almas para salvar. Após um dia repleto de frustrações e zombarias, as duas evangelizadoras encontram refúgio — ou assim pensam — ao bater à porta de Reed numa tarde tempestuosa em uma pequena cidade americana. A irmã Paxton (Chloe East), doce e idealista, encarna o lado mais sonhador e ingênuo, enquanto a experiente e cautelosa irmã Barnes (Sophie Thatcher) exibe uma perspicácia afiada, revelando-se a voz mais desconfiada do duo. Unidas pela missão de converter Reed à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, enfrentam uma surpresa: ao invés de resistência, encontram nele um interesse inquietante, como se as palavras delas fossem o combustível para algo mais profundo e perturbador.

 

Ignorando os primeiros sinais de alerta — o metal reforçando as paredes, o conhecimento inquietantemente profundo de Reed sobre Joseph Smith, e até mesmo a vaga menção de uma esposa presente na casa —, as missionárias deixam-se embalar pela atmosfera acolhedora. O frio lá fora intensifica-se, enquanto o aroma convidativo de uma torta recém-assada parece envolver o ambiente, levando-as a baixar a guarda. Contudo, há algo perturbadoramente errado. As regras de sua igreja são claras: missionárias não devem permanecer sozinhas com um homem sem a presença de outra mulher. Além disso, aquela torta… Está no forno há tempo demais. Quando finalmente percebem que a porta de entrada foi trancada e o tentador aroma vem, na verdade, de uma vela aromática, até mesmo suas ingênuas convicções começam a vacilar. Reed realmente tem uma esposa? Ou será que, como tantas histórias bíblicas que aceitaram sem questionar, essa também não passa de mais uma crença cega, prestes a desmoronar diante da realidade?

 

As irmãs Barnes e Paxton são desafiadas em sua fé de forma brutalmente direta. O embate começa na sala de estar, quando o carismático e manipulador Reed declara ter encontrado a única “religião verdadeira”, provocando-as com uma confiança que beira a arrogância. A partir desse ponto, sua retórica se intensifica, atingindo níveis extremos de erudição manipulativa. Reed conduz um extenso discurso sobre a evolução da iconografia judaico-cristã, assumindo a postura de um professor provocador que não entrega respostas, mas manipula suas alunas para que cheguem a conclusões cuidadosamente dirigidas. Apesar desse excesso, Herege encontra uma maneira engenhosa de explorar os limites entre fé, esperança e provas, desafiando não apenas as protagonistas, mas também o público. A tensão crescente, cuidadosamente orquestrada por Beck e Woods, que também assinam o roteiro, é quase palpável. Mesmo quando a teoria cede lugar à prática, a narrativa mantém sua força, sustentada por monólogos provocativos que traçam paralelos improváveis entre a Torá e o jogo Monopoly. É exatamente nesse contraste entre o grandioso e o banal que o filme encontra seu equilíbrio, mantendo a tensão viva com uma inteligência perspicaz.

 

Hugh Grant domina o filme com uma performance fascinante, equilibrando charme, ameaça e uma inteligência quase insuportável. Seu personagem é uma mistura irresistível de ego e melancolia, reforçada por diálogos afiados e uma entrega que diverte e perturba na mesma medida. Chloe East e Sophie Thatcher brilham ao lado dele, suas personagens são fundamentais para contrastar com o magnetismo opressor de Reed. No entanto, há uma mudança brusca na personalidade de uma das protagonistas que enfraquece a narrativa, resultando em um arco inconsistente, que ainda me faz questionar a real intenção dos diretores.

 

A produção atinge seu auge ao mergulhar na exploração do credo alheio, revelando o quão frágil e superficial o debate religioso pode ser sob uma ótica crítica. Uma das cenas mais memoráveis do longa expõe essa fragilidade com maestria: Após um grande sermão do Sr. Reed de quase 10 minutos ser refutado com o argumento de “a porra da cabeça do deus egípcio é um pássaro”. Ou quando Grant canta Radiohead e imita Jar Jar Binks para demonstrar que todas as religiões estão equivocadas. Em outro momento, uma discussão acalorada sobre pornografia é pontuada de maneira irônica pela exibição de uma propaganda de camisinhas, gerando um contraste provocativo. Curiosamente, essa abordagem propositalmente superficial não enfraquece a narrativa. Pelo contrário, é na combinação de erudição e humor irreverente que Herege encontra seu ritmo, transformando o que poderia ser uma crítica hermética em uma comédia sagaz que ridiculariza a pretensão de certezas absolutas.


Infelizmente, Herege perde força ao se aproximar de seu clímax. O último ato recai em truques previsíveis e um suspense genérico, com Beck e Woods adotando um tom excessivamente conciliador. Embora alguns possam apreciar essa liberdade interpretativa, o que prevalece é uma dualidade que compromete a coesão narrativa e dilui o impacto emocional do desfecho. Apesar do título prometer ousadia e provocação, o filme hesita em levar sua heresia às últimas consequências, deixando a impressão de que as protagonistas carregam mais coragem do que a trama ousa sustentar. O resultado é uma obra mais divertida do que ambiciosa, erguida sobre as performances cativantes de seu elenco e uma execução técnica impecável. No entanto, falta o ímpeto para realmente desafiar o sagrado — o que é uma pena, considerando que um Deus digno de devoção provavelmente perdoaria um vilão Hugh Grant exaltando Star Wars: Episódio I – A Ameaça Fantasma com a mesma reverência dedicada à Bíblia.

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